1.11.15

APENAS UM AMIGO - REFLEXÕES NO ATELIER

Abstrato - Tais Luso

     

                   - por Tais Luso de Carvalho

  Mais uma madrugada e mais outro amanhecer, sempre o mesmo ritual: a noite despedia-se enquanto surgia a tímida luminosidade do amanhecer.

   Mariana permanecia no sótão da casa entre telas e pincéis. Ali em seu atelier, ela dava vazão às suas emoções, colocando em cada pincelada um pouco de seu espírito, por vezes melancólico e solitário. Os suaves e disciplinados acordes uniam-se em melodias que lhe tocavam o coração: as Ave-Marias de Gounod, de Shubert, de Donati...

   Não demorou muito para que ela largasse as telas e desse descanso aos pincéis. Já cansada, debruçou sua cabeça sobre a mesa e passou a refletir sobre sua vida, seus encantos e desencantos, seus afetos, seus amigos, sua família.

  Simpatizante da filosofia budista questionava-se, também, sobre a reencarnação e outros tantos caminhos. Mas até aquele momento não chegara a um consenso. Ao mesmo tempo em que estava sintonizada com a estética, estava em dissonância com seus valores e com sua espiritualidade.
E ali viu-se só.

   A música inundava o atelier amenizando sua solidão. As tintas e os pincéis, antes deixados de lado, agora testemunhavam os abafados soluços de Mariana. O tempo foi cumprindo o seu percurso até que Mariana levantou a cabeça como se estivesse emergindo de profundezas. E fixou, ao acaso, seu olhar num quadro esquecido, dependurado e coberto num canto do atelier, quase diante de sua mesa, ao lado de objetos insignificantes.

  Com curiosidade, levantou-se e removeu um pano que encobria o quadro que havia pintado há muitos anos. Um pouco surpresa, ficou a olhar aquele rosto de expressão suave, olhos cheios de ternura e os cabelos castanhos caindo sobre o belo rosto, numa suave harmonia.

   Voltou à mesa e dali ficou a observar aquela expressão tão singular: um olhar que não recriminava e lábios que não acusavam. Talvez ela tivesse descoberto, em algum recanto de sua alma, sentimentos de generosidade e complacência. E pintara um retrato comprometido com esses sentimentos e com suas carências.

 Já menos amargurada, levantou-se e substituiu a música: colocou “Chanson d’enfance” e enterneceu-se como se buscasse um afago; queria sentir apenas a alegria do momento, e ter uma paz que não oscilasse. E assim ficou por bom tempo, recostada no sofá, deixando-se conduzir pelos suaves acordes.

   Mais tarde aproximou-se do quadro e fixou seus olhos na pintura:

   - E agora Amigo? Estamos aqui sozinhos, frente a frente... Mas nada ouso Te pedir, guardo na memória a tua Via-Sacra... Mas procuro apenas alguém que me escute, que retorne comigo à infância, e que compartilhe de meus projetos; ainda que pequenos projetos; e que na solidão de minhas madrugadas esteja presente...

  Sinuoso, o sol invadiu o atelier deixando uma sensação de conforto. Mariana caminhou em direção ao quadro, beijou o meigo rosto e encostou a porta...
- Até amanhã.


___________________________________________________

( Conto publicado na Revista de Artes Dartis nº 24 )